DNA do Crime marca o novo ciclo que vive o audiovisual brasileiro 64391e

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Série da Netflix sintetiza a força do novo audiovisual brasileiro ao unir thriller policial, crítica social e profunda humanização dos personagens em um marco artístico do gênero.

DNA do Crime foi lançada pela Netflix em 2023 e retorna para nova temporada | Foto: divulgação/Netflix

O audiovisual brasileiro vive um momento singularmente fértil e promissor com Maria e o Cangaço, Impuros, Vidas Bandidas, Beleza Fatal, Senna, Pedaço de Mim, Cidade Invisível, Cangaço Novo e dezenas de outras produções. Após décadas de desafios estruturais e flutuações, vemos hoje uma convergência de fatores que impulsionam a criatividade e a qualidade: a consolidação das plataformas de streaming como novas vitrines globais, o surgimento de uma geração de cineastas tecnicamente afiada e narrativamente ousada, o apoio do poder público e da iniciativa privada e um público cada vez mais ávido e exigente por histórias complexas que reflitam a realidade multifacetada do país. É neste cenário vibrante que DNA do Crime (2023) não apenas surge, mas se destaca como um marco exemplar, sintetizando as conquistas atuais e apontando para o futuro.

Mais do que um thriller policial eficiente, a série brilha pela humanização profunda de seus personagens, uma qualidade que transcende o gênero. Os investigadores, encabeçados pela intensa detetive Suellen (Maeve Jinkings), são apresentados em suas dimensões humanas: carregam traumas, dúvidas, falhas pessoais e uma carga emocional esmagadora que permeia seu trabalho diário com a morte. O policial federal Benício (Rômulo Braga) também é retratado com nuances, mostrando os custos psicológicos e éticos em um sistema falho e intrincado. Esta abordagem não é mero detalhe, é o coração da série, permitindo que o espectador se conecte não apenas com o quebra-cabeça criminal, mas com as pessoas que o desvendam e as que são por ele dilaceradas.

Inclusive os criminosos são tratados de maneira complexa e profunda, mostrando como a sociedade e suas contradições foram decisivas para gerarem meliantes como o Sem Alma (Thomas Aquino) e Isaac (Alex Nader), e que estes possuem famílias, amigos e relações que são diretamente impactadas e também influenciam em suas ações e decisões, os aproximando do crime estruturado representado na trama pela Organização.

É justamente essa humanização que abre espaço para a exploração magistral das complexas questões éticas e morais que permeiam o universo da investigação criminal e da justiça. DNA do Crime não oferece respostas fáceis. Ela mergulha nas zonas cinzentas e nos apresenta como o crime organizado está internacionalizado, em particular no que tange ao tráfico de drogas, situando parte da sua trama na fronteira com o Paraguai e Argentina.

A produção valoriza os avanços da perícia (como o próprio DNA, que dá nome à série), mas também questiona sua infalibilidade e o peso excessivo que pode receber, mostrando como erros técnicos ou interpretativos podem ter consequências devastadoras. (Veja abaixo o trailer da 2ª temporada)

Até onde os métodos dos investigadores podem ir para alcançar um resultado considerado “justo”? A série confronta a linha tênue entre a busca legítima pela verdade e a tentação de atalhos moralmente questionáveis, ou mesmo da violência.

A corrupção, a lentidão burocrática, a pressão política e a precariedade de recursos são apresentadas não como pano de fundo, mas como obstáculos reais que moldam as investigações e, muitas vezes, comprometem a justiça. A série questiona: quem paga o preço por essas falhas?

Como lidar com a culpa de um erro? Como sobreviver ao luto de uma perda brutal, como a do policial Santos na primeira temporada? A série explora esses temas com crueza e profundidade psicológica, tanto nos familiares das vítimas quanto nos próprios agentes da lei.

DNA do Crime não é um fenômeno isolado, se insere perfeitamente no movimento de uma nova geração de diretores (alguns não tão novos, mas que souberam se inserir neste novo momento), roteiristas e produtores que está redefinindo o cinema e as séries brasileiras. Dirigida por nomes como Heitor Dhalia (O Cheiro do Ralo, Tungstênio, Nina) e produção de Manoel Rangel (Quando Falta o Ar, A Batalha da Rua Maria Antônia, Grande Sertão), a série exibe uma linguagem visual sofisticada, um ritmo narrativo preciso que equilibra tensão e introspecção, e uma ambição temática clara. Esses criadores trazem consigo referências globais diversificadas, um olhar autoral marcante e uma ousadia em abordar temas difíceis sem concessões fáceis, algo que talvez fosse mais raro em produções nacionais de grande escala no ado recente.

DNA do Crime é mais do que uma série de sucesso, é um testemunho eloquente do momento vigoroso do audiovisual brasileiro. Ao combinar uma narrativa policial eletrizante com uma humanização profunda e necessária de seus personagens, além de uma corajosa imersão nas complexidades éticas e morais do crime e da justiça, a série atinge uma rara maturidade artística em sua segunda temporada que estreou recentemente na plataforma Netflix e segue há semanas entre as mais assistidas. Ela demonstra que é possível produzir entretenimento de alta qualidade, com apelo de massa, sem abrir mão da profundidade, da crítica social e da reflexão.

Ao mesmo tempo, a série se ergue como um exemplo robusto da nova geração de criadores que, com talento, técnica e visão, está conquistando espaço e respeito, tanto nacional quanto internacionalmente. DNA do Crime não apenas se beneficia deste bom momento do audiovisual brasileiro, é uma das forças que o consolida e aponta o caminho para um futuro onde a complexidade da experiência humana brasileira possa ser contada com ainda mais voz, coragem e excelência. É um DNA de qualidade que merece ser replicado.

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