Dia da Consciência Negra é um dia para reafirmar nossas lutas e raízes 601o56

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“A história dos negros, que durante três séculos foram submetidos no Brasil às formas mais vis e abusivas de trabalho, é a nossa maior referência de exploração, precariedade, injustiça e de abusos da classe dominante”

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A cultura e os genes africanos estão no nosso DNA. Somos um só povo. Um povo que carrega as marcas de uma história de exploração e sofrimento. De todos os legados nefastos que a escravidão deixou no Brasil, dois deles ainda desequilibram a sociedade. O primeiro e mais evidente é o racismo que permeia todas as relações. O segundo é a concepção de que o trabalho não deve ser regulado por direitos que amparem o trabalhador. Por serem ainda tão presentes e pungentes, as raízes desses legados devem ser conhecidas, esmiuçadas e problematizadas, para que assim possamos combatê-las.

Se hoje cerca de 60% da população do país é composta por pardos e negros, os antecedentes africanos desses brasileiros que aportaram por aqui entre os séculos XVI e XIX não vieram por vontade própria. Foram aprisionados na África, submetidos aos mais cruéis tratamentos, o que incluía a travessia do Atlântico a bordo dos trágicos navios negreiros, a separação das famílias e a humilhante e exaustiva exposição no mercado de escravos. Quando vendidos eram forçados a cumprir uma rotina desumana de trabalho em um clima de terror, com castigos físicos e humilhações. Segundo a historiadora Lilia Schwarcz, cerca de 3,8 milhões de imigrantes africanos chegaram ao Brasil nessas condições.

O senso comum que supostamente normalizava a escravidão alimentava-se de ideias como a de que os negros não tinham alma não sendo, portanto, seres humanos. Uma ideia diabólica que se enraizou no espírito das classes dominantes desde o século XVI. Seria um insulto debater uma ideia como esta, até mesmo para refutá-la. Não é preciso. O absurdo é evidente e já naquela época isso estava claro. Eram muitas as habilidades dos povos africanos e elas não se restringiam à cultura, à dança e à culinária. Eles dominavam técnicas de produção de açúcar, do uso do ferro, do cuidado com o gado, da agricultura e tiveram no Brasil esses conhecimentos explorados sem reconhecimento algum.

Embora a historiografia praticada por anos defendesse que existia uma harmonia entre os diferentes povos que aqui viviam, estudos mais recentes contestam essa visão e mostram que havia entre os escravizados uma enorme resistência e sentimento de revolta. No livro Brasil, uma biografia, Schwarcz afirma que “no Brasil, os escravizados reagiam mais do que em outras colônias escravistas. Mataram mais seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e se revoltaram mais. Muitos reagiam de forma violenta à condição que era imposta, organizando fugas individuais ou em grupos, e até assassinando os senhores. Resistência que deu origem aos mocambos, ou quilombos, já no século XVI”.

O mais famoso deles foi o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco, que hoje pertence ao município de União dos Palmares, em Alagoas. Formado no fim do século XVI, o quilombo existiu por cerca de um século, sendo seu principal líder, Zumbi dos Palmares, reconhecido como símbolo da resistência negra. Traído e delatado aos senhores de escravos, Zumbi foi morto e decapitado aos 40 anos no dia 20 de novembro de 1695. O dia da consciência negra, 20 de novembro, reverencia, desta forma, a memória de Zumbi.

Esse intercambio macabro entre África e Brasil, sob o comando da coroa portuguesa, perdurou por três séculos abastecendo a indústria canavieira, o extrativismo, o ciclo do ouro e finalmente a economia cafeeira. A escravidão constituiu a relação compulsória de trabalho sobre a qual o Brasil se ergueu durante a monarquia.

Ainda que no século XIX fosse forte a pressão internacional pelo fim da escravidão, no Brasil ela se arrastou o quanto pode. Com o império português cada vez mais fraco e desacreditado, proclamar a abolição em 1888 e a República em 1889, foram ações que apenas davam forma e legalidade a uma realidade que já se impunha por força dos novos tempos.  

A abolição, enfim, representou uma ruptura com aquele sistema infernal. Para os negros escravizados a liberdade foi um bem valorizado. Ela não veio, porém, acompanhada de nenhuma disposição política para inserir na sociedade aquela população trazida à força do continente africano. Ainda que o clamor popular tenha sido forte, o compromisso do império ao decretar a Lei Áurea era com o sistema econômico capitalista que crescia e demandava novas formas de produção e trabalho.

Depois daquele 13 de maio de 1888, milhões de ex-escravos aram a viver à margem da sociedade, enquanto novos trabalhadores assalariados chegavam das regiões mais pobres da Itália, da Espanha e do Japão. Trabalhadores castigados pela mentalidade escravista que se manteve mesmo após a abolição.

Mas a despeito da marginalização dos negros, a cultura, os conhecimentos e os genes africanos no alvorecer da República já eram parte importante da identidade brasileira e essa influência se aprofundou. Não foram poucos os artistas e intelectuais abolicionistas brancos e negros, como Castro Alves e Luís Gama. Machado de Assis, filho de ex-escravos, fundador da Academia Brasileira de Letras, até hoje é considerado o maior escritor brasileiro. No início do século XX os modernistas exaltaram a miscigenação em obras como A negra, de Tarsila do Amaral, que colocava o povo negro como uma referência cultural altiva.

Depois de 1930, no processo político de construção de uma nacionalidade desencadeado pelo governo de Getúlio Vargas, o importante legado cultural africano foi reconhecido e incorporado para além de nichos vanguardistas. Lilia Schwarz afirma que: “Na representação vitoriosa dos anos 1930, o brasileiro nasce, portanto, onde começa a mestiçagem. A mistura deixou de ser desvantagem para tornar-se elogio e diversas práticas regionais associadas ao popular – na culinária, na dança, na música, na religião – seriam devidamente desafricanizadas, por assim dizer. Transformadas em motivo de orgulho nacional”. Ela cita a feijoada, originalmente “comida de escravos”, a capoeira, oficializada como modalidade esportiva nacional, e o candomblé, oficializado neste mesmo contexto.

Mais do que isso, no governo de Getúlio a mentalidade escravista que permanecia nas relações assalariadas de trabalho, foi rompida através da criação de um conjunto de leis trabalhistas que elevou o povo brasileiro, formado pela mistura entre negros, indígenas, portugueses, italianos, espanhóis, japoneses, à cidadania.

Entretanto, mesmo com esse esforço político de construir uma nação, as raízes profundas de mais de 300 anos de escravismo continuam dando estranhos frutos. Os negros morrem mais cedo, tem menos o ao ensino superior, realizam trabalhos piores e possuem renda mais baixa. São frequentemente vítimas de todo tipo de discriminação. Representam ainda o perfil da população carente e vulnerável e são maioria no enorme exército industrial de reserva, oprimidos pelo desemprego e pela precariedade.

A história dos negros, que durante três séculos foram submetidos no Brasil às formas mais vis e abusivas de trabalho, é a nossa maior referência de exploração, precariedade, injustiça e de abusos da classe dominante. Uma história que hoje se projeta no desemprego, na miséria, na retirada de direitos e de proteção trabalhista e na permanência do racismo. Um racismo que aflige a todo o povo brasileiro.

João Carlos Juruna Gonçalves, 68, é secretário geral da Força Sindical.
Alvaro Egea, 67, secretário geral da CSB.
Nivaldo Santana, 68, secretário Internacional da CTB.

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